A velha...

A Velha Carlota
Ontem, a velha Carlota dos moinhos d’água saiu da mercearia com dois sacos de compras, chegou a casa e pensou em matar-se. Porque chora vossemecê, Ti Carlota? Sentou-se num banco que tem sempre encostado ao lume. No Verão, o lume está apagado e ontem o lume estava apagado. A velha Carlota dos moinhos d’água sentou-se no banco e nem guardou a embalagem de Planta no frigorífico, nem guardou no armário de rede os pacotes de bolachas maria que comprou para os cachopos que a vêm visitar. Sentou-se num banco que tem sempre encostado ao lume. Já não presto para nada. Os seus olhos eram grandes. As lágrimas desciam-lhe pelas pregas do rosto. Os lábios da velha Carlota dos moinhos d’água não são beijados há cinquenta anos. Ninguém olha para eles. São finos e secos. Já não presto para nada. A velha Carlota dos moinhos d’água levantou-se do banco. As suas mãos começaram a desabotoar a bata negra. Depois de cada botão, um pouco mais da combinação branca de flanela. Porque chora vossemecê, Ti Carlota? As suas mãos soltaram as alças da combinação. A velha Carlota dos moinhos d’água, no meio da cozinha, despiu-se toda nua. Uma lágrima caiu-lhe sobre o peito, desceu-lhe pela barriga, pela perna e secou antes de lhe chegar ao joelho. Tirou os ganchos, desprendeu a poupa e os cabelos brancos estenderam-se-lhe pelas costas ligeiramente curvadas. A porta da velha Carlota dos moinhos d’água nunca está fechada ao trinco. Entrei. Um silêncio. Olhou para mim, toda nua, a chorar. O mesmo silêncio. A casa era escura e fresca. Os dois sacos de compras estavam no chão, junto à roupa caída. Porque chora vossemecê, Ti Carlota? Já não presto para nada. Não diga isso, Ti Carlota, a gente gostamos muito de si.
José Luís Peixoto - in Cal
3 Comentários:
"Eu não tinha que ter esperanças - tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco." - Um "velho" amigo.
De lágrima no olho, dessas que corre pelo corpo e que secam porque assim tem de ser, leio e releio...
Esta é a velha de olhar doce que se esconde por baixo das suas peles e roupas usadas e velhas. E por isso mesmo, por estarem velhas e usadas, são as mais macias. São as que lhe dão mais conforto, as que a protegem, são as roupas velhas e usadas que lhe acariciam a pele e esta retribui com a delicadeza de uma vida partilhada.
A velha... a velha já não é a mesma velha...
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial